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Apenas um sonho

  • Leandro Borsarini Cachorowski
  • 5 de dez. de 2016
  • 10 min de leitura

* Música sugerida para ouvir durante a leitura do conto: Hex Girlfriend - Neon Indian

A vida é algo estranho. Atrai todo tipo de pessoas que fazem todo tipo de papel

nela. Algumas passam por elas no período de um minuto e se vão sem que percebamos. Outras deixam enormes vazios em nossa alma. Algumas fazem nosso coração bater mais forte. Outras nos fazem querer que ele pare de bater. Algumas ficam um imenso tempo em nossas vidas e se vão sem deixar vestígios. Outras nos deixam sem rumo quando partem. Ainda assim, há aquelas que fazem com que curtos momentos permitam que nossos corações brilhem e, quando se vão, deixam que esse brilho preencha o vazio. Essas pessoas são as melhores.

Henry conheceu Jennifer Hudson aos treze anos. Após alguns cálculos, em uma noite fria de outono, escreveu a data exata na última página de seu caderno de sonhos. Aconteceu dia vinte de setembro de 1988, na cidade de Eagle's Bay, Illinois.

A temporada estivera quente nas últimas semanas, mas o tempo começava a esfriar aos poucos. O inverno prometia naquele ano. As folhas do salgueiro ao lado do estabelecimento caíam sobre seu telhado quando Henry entrou. Tratava-se do fliperama Phillip's Arcade Gamez, a única fonte de diversão restante na cidade ultimamente. O parque Ross fora fechado no verão passado, o que diminuíra bastante o ânimo das crianças desde então – especialmente daquelas com poucos amigos.

Henry entrou sozinho, apenas com alguns trocados que catou por entre as almofadas do sofá e uma lata de Pepsi. Caminhou pelo tapete bordado com planetas em cores neon, inalou o cheiro de chicletes característico do lugar e avistou o jogo novo. Era uma máquina não muito diferente das outras, mas o dono a comprara há meras duas semanas, e essa era sua primeira chance com ela. "KiLL-THE-Zs" era o nome desenhado ao lado da tela. Zumbis se projetavam para fora de um alvo nas extremidades da arte. Era fantástica. Henry ainda tinha dúvidas quanto à pequena quantidade de pessoas – zero – ao redor da nova máquina, contudo deixou-se levar pela emoção e colocou uma das moedas ali.

Ao pressionar o botão "START", o jogo soltou um feroz efeito sonoro, como um

grunhido raivoso e cadavérico. Jogou por cerca de vinte minutos e pôde concluir: era maravi-

lhoso. Uma arma futurística na parte central da tela liberava projéteis luminosos direto na ca-

beça dos zumbis que vinham de todas as direções – a parte da mira era por sua conta. Já atingira o nível três quando empacou no último ataque. Tentou por mais alguns minutos, mas nada adiantava. Começava a desconfiar o porquê de não haver mais ninguém por ali. Foi nesse momento que tudo mudou.

Ouviu uma voz suave vindo de trás de si. Virou-se quase que de imediato. Era uma garota. Ficou surpreso por ela estar longe dos jogos de menina. No primeiro instante, Henry pensou que ela estivera na fila por bastante tempo e só naquele momento pedira para ele a deixar jogar. Sentiu-se envergonhado e estava pronto para deixar o jogo quando percebeu que não entendeu o que ela falou.

"O que disse?" perguntou Henry.

"Tente três para a esquerda, dois para a direita, um para cima e um para baixo," repetiu a garota, apontando para o joystick do jogo.

Seria possível uma garota que entendesse sobre jogos de zumbis?, pensou.

"Não vai dar certo. Acredite, eu tentei todas as combinações possíveis." Henry

perceberia apenas alguns minutos depois como sua voz soara ridícula.

"Isso daria mais de duzentas combinações. Pelo tempo que está aqui, não tentou

todas." A garota lhe deu um sorriso amistoso. "Confie em mim. Vai dar certo."

Henry sorriu de volta, desajeitado. Tentara não mostrar muito os dentes para o caso de ainda restar algum resquício do sanduíche que comera antes de sair de casa preso entre

eles. Recomeçou a fase. Jogou até chegar à parte em que empacara. Quando finalmente o

zumbi gigante que perambulava pela tela surgiu, ele fez o que a garota disse. Henry não notou no momento, mas a garota sussurrava os comandos pelas suas costas.

Sem motivo aparente, o jogo chegou ao nível quatro. O zumbi desapareceu sem

ser derrotado. Henry virou-se para a garota, boquiaberto.

"Como..."

"É uma falha do jogo. Quase ninguém consegue passar essa parte, por isso quase

ninguém se anima a jogar. Quem joga até o fim, geralmente conhece as falhas." Ela passa a

mão pelos cabelos ruivos, esverdeados pelo neon do ambiente.

"E você já jogou até o fim?" Henry já se esqueceu do jogo. Perguntou apenas para

evitar que a garota saísse dali.

"Não. Meu pai conserta jogos e me falou alguns truques." Ela estendeu a mão para

Henry. "Jennifer."

O garoto apertou sua mão, desajeitado. "Henry."

"Vem aqui sempre, Henry?"

"Duas vezes por mês... Às vezes mais. Eu nunca vi você por aqui."

"Eu posso dizer o mesmo." Jennifer sorriu novamente. Ela fazia bastante isso.

"Você... pode soltar a minha mão agora."

Henry, percebendo que continuava a segurar a mão dela, recolheu-a rapidamente e

a colocou dentro do bolso. Também notara que ficara vermelho. Não pôde saber se Jennifer

também o fez, mas achava que não, devido às luzes forte do lugar.

Ela deu uma olhada rápida para o relógio acima do balcão de lanches e voltou a

sorrir para Henry. "Tenho que ir. Não posso voltar muito tarde. Quem sabe a gente se encontra outro dia, matador de zumbis."

Ela virou-se para a porta de saída e caminhou até a calçada. Ao chegar lá, virou-se

novamente para Henry. Gesticulou em despedida e murmurou "Tchau". Ele retribuiu o gesto, mas nunca soube se ela o viu. Ele a vira atravessando o estacionamento, até sumir de vista, em meio aos raios de sol poente vindos das brechas entre os telhados da vizinhança. A vira outra vez apenas em outubro, na noite de Halloween.

Eagle's Bay não era uma cidade grande. Talvez fosse pouca coisa maior que um

condado. As pessoas conheciam umas às outras ali e, na grande maioria dos casos, se encontravam mais de uma vez no mesmo ano. Esse foi o fator que tornou os próximos anos de Henry diferentes dos anteriores. Entrara no Phillip's Arcade Gamez da mesma maneira como sempre fora às ruas: roupas simples, sem muitos detalhes, nenhum tipo de couro e qualquer outra coisa que gritasse nerd! para todos que o vissem. Era uma confusão a maneira como se sentia em relação a isso. Às vezes sentia-se bem por gostar do que gosta, ser ele mesmo e não outro desconhecido. Às vezes sentia-se terrível por saber que, se trocasse o modo como se parece, talvez não apanhasse tanto na saída da escola e talvez as pessoas olhassem (ou até conversassem) com ele normalmente – garotos e garotas. De qualquer forma, nunca dera muita bola para isso. Sempre que as coisas se tornavam ruins demais em sua realidade, Henry arrumava uma maneira de penetrar em alguma outra, utópica e evasiva a seu modo, onde nada poderia realmente machucá-lo. Esse lugar era geralmente encontrado dentro do fliperama ou do abandonado parque temático Vulgus Ross. Henry gostava de chamá-lo de Fortaleza Rex – era esse o nome que seu pai e ele davam para o lugar onde "os monstros não poderiam pegá-los" quando ele era criança. Isto é, antes de seu pai dormir ao volante.

Jennifer fora a primeira garota que falara com ele sem ser por pura necessidade. Dormira naquela noite pensando nela, em como talvez ela vira nele o que os outros não viam;

em como talvez aquilo fora apenas alguma coincidência estranha; e, seguindo a frieza da realidade de Henry, em como ela já deveria ter esquecido seu nome antes mesmo de chegar ao final do estacionamento. Esse último pensamento era como uma lâmina afiada cortando suas costelas por dentro – não porque ela tinha a obrigação de lembrar-se de seu nome, mas porque aquela garota, de certa forma, fantástica, acabaria sendo apenas mais um deles. Aqueles que não se importam com ele. Até a metade de outubro, martelara essa desconfiança infernal na cabeça. Pelo fim do mês, tinha certeza de que não a encontraria mais.

Ajudava o professor de Educação Física a pendurar os enfeites da festa de Halloween quando recebera o convite de um dos alunos, que se esforçava para distribuí-los o mais

rápido possível e ir para casa. A cidade toda fora convidada, e a escola toda seria local de festa. Era algo que acontecia todo ano, mas nem sequer metade do colégio era ocupado, sendo a maior parte da população de Eagle's Bay velhos sedentários e pais de subúrbio que dariam qualquer coisa para não ter que sair de casa no domingo. A comemoração seria adiantada naquele ano e, mesmo que por um dia, a noite de pedir doces era muito cansativa para que aguentassem dois festivais seguidos de Halloween.

Viu Jennifer na festa após dez minutos perambulando sem rumo. Pensava em sair

dali e voltar para casa quando ela deu um soco de leve em seu ombro. Ela vestia-se como

Amy Peterson, do filme A Hora do Espanto, depois que já fora transformada em vampira.

Henry se fantasiou como Freddy Krueger. Ele ajudava a colocar as maçãs do amor – todas com rostos monstruosos desenhados na cobertura – de volta na mesa dos doces, uma vez que ela fora desarrumada para a mostra do bolo.

Ambos foram para fora, e passaram o resto da festa perambulando ao redor da escola, conversando primeiro sobre seus jogos favoritos, depois sobre cinema e culinária. Jennifer – que mais tarde pediria para Henry que a chamasse de Jenny – contava histórias de como sua tia Jackie arruinara a ceia de natal repetidas vezes com seu "peru russo defumado". Henry posteriormente falaria sobre como as pessoas não realmente valorizam o cinema sci-fi. Passaram a noite dessa forma, sem um rumo específico para as conversas, que se seguiram fluídas e naturais. Henry gostava disso. Não era apenas alguém com quem falar sobre qualquer coisa; era alguém que falaria com ele sobre o que ele sempre gostara de conversar – mas nunca tivera nenhum ouvinte.

Jenny lhe contou onde morava, no bairro vizinho. Não frequentava a mesma esco-

la que Henry, então não se veriam muito em horário de aula. Eagle's Bay possuía apenas duas escolas, e cada uma ficava em um lado diferente da cidade.

O relógio da igreja batia às onze quando eles se separaram e voltaram para casa.

Foi um sermão e tanto da parte dos pais de ambos.

A próxima vez que a encontrara foi na sua rua. Sentiu-se estranho quando ela jo-

gara uma pedra em sua janela – esse geralmente era o papel do garoto –, mas correu ansioso para encontrá-la na calçada. Sonhara com algo desse tipo no fim de semana anterior. Pensava muito nela naqueles dias. Escreveu um pedaço do sonho em seu caderno de sonhos, mas desistiu e apenas anotou o dia em que a conhecera.

Após caminharem pelo bairro todo, os dois subiram em suas bicicletas e chegaram

ao topo da colina Hatfield. Ela lhe mostrou a vista mais próxima e incrível que vira em sua

vida: a cidade toda, iluminada pelo pôr do sol, descansando sobre as brisas de outono. O inverno chegava, e as árvores já não carregavam mais muitas folhas. Noutro dia eles voltaram à noite, o que foi ainda mais maravilhoso. Enquanto o sol não se cansava de brilhar, ambos

conversavam e escutavam música, numa depressão de terra ao lado da colina, como se nin-

guém mais existisse naquele momento.

Jenny tinha amigos, mas era a única amiga de Henry. Quando ela lhe apresentou

seus amigos, sentiu que pela primeira vez as pessoas riam com ele e não dele. Nunca tivera

coragem de se apresentar para os outros – não da forma como os outros se apresentavam para ele. Logo, eles e mais quatro outros amigos subiam a colina à tarde, embora apenas Jenny e Henry ficavam olhando para a cidade até a noite. Não demorou muito para que eles todos se tornassem quase uma segunda família para Henry. Nem mesmo a sua própria família era tão próxima quanto seus cinco melhores amigos.

Essa sensação de liberdade – em muitos sentidos – durou por vários anos, mas as

visitas à colina duraram apenas dois. Na primavera de 1991, Jenny lhe contou que seus pais – e, consequentemente, ela – iriam se mudar para o Oregon. No instante em que ela terminou de falar, Henry achou que se tratava de uma brincadeira, mas quando olhou em seus olhos úmidos percebeu que era verdade. Eles teriam apenas duas semanas para compensar tudo o que já passaram juntos.

Reservaram esse prazo para fazer exatamente o que faziam antes, mas em tempo integral: subir na colina, escutar CCR, dormir sob as árvores até a lua brilhar no céu, assistir as estrelas perdidas se mostrarem ao mundo, jogar terra e água um no outro... Tudo o que fizeram em dois anos e meio condensado em duas semanas. A última noite foi a melhor, mas a única em que Henry não conseguira dormir direito.

Foram ao Phillip's Arcade Gamez uma última vez naquela noite. Os jogos mudaram de lugar, mas, em suma, o local continuava o mesmo. Jogaram KiLL-THE-Zs e Pac-Man. Jenny ganhou quase todas as partidas. Fazia tempo que Henry não vira seus cabelos reluzirem

daquela forma, sob as luzes de neon.

Após a visita ao fliperama, voltaram à Hatfield. As estrelas não pareciam brilhar naquela noite. Não mais do que o fizeram nas anteriores. Estavam quase iguais ao dia em que eles subiram lá pela primeira vez. Quietas.

Jenny sorriu mais do que chorou – e o fez sempre que recordava que aquela era sua última noite na cidade. Quando a lua cheia surgiu no céu estrelado, ela pegou no sono. Pela primeira vez, beijou a bochecha de Henry antes de escorar a cabeça em seu ombro e apagar.Somente pela madrugada Henry dormira também. Acordara no dia seguinte, mas Jennifer não estava mais lá.

Ele correu para sua casa, onde seus pais o procuravam. Após um momento de explicações, procurou por Jenny no bairro vizinho. O caminhão de mudanças já estava partindo, e ela, junto a seus pais, já havia ido. Ele colocou seu caderno de sonhos – com todo tipo de divagação que seu inconsciente realizava – em meio aos móveis na caçamba, sem ser visto pelo motorista. Era seu bem mais precioso, e essa era uma forma (meio estúpida, ele pensava) de agradecer a Jenny por ter lhe dado os melhores anos de sua vida – e, além disso, lhe mostrado que a vida podia ser muito mais do que ele pensava.

Na noite seguinte, ele voltou à Hatfield pela última vez até fazer dezenove anos. O céu brilhava de um jeito diferente naquela noite. De um jeito meio vazio. Nunca pensara que

sentiria algo além de amizade por Jenny até ela partir. Não sabia se a encarava como uma

irmã ou... outra coisa. O fato é que a colina não era mais a mesma. Não havia mais música,

risadas, lama ou conversas longas. Seus amigos não podiam ficar até tarde por ali.

Jenny lhe dera seus amigos. Sua vida seria muito diferente dali para frente. Mas, afinal, há um momento em que as coisas boas simplesmente param. Há um momento na vida em que as pessoas se vão e deixam marcas – boas ou ruins. São elas que moldam o futuro de alguém, e Henry sabia disso. Sabia que os curtos momentos que passaram juntos foram o suficiente para que se sentisse mais do que "aquele lá no canto da sala". E também sabia que,

em algum lugar, alguém sonhava com ele. Se não fosse Jenny, seria alguém mais. Henry sentia.

Alguém sonhava com ele e, se não fosse isso, ele certamente sonharia com alguém especial. Mas ele preferiu não pensar nisso. Apenas se levantou e decidiu não remoer os últimos anos quando se tem uma vida toda pela frente.

Essa foi a última vez que fora à colina pensando em Jennifer Hudson – a garota que lhe mostrou que a vida não era apenas um sonho.

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